O Direito brasileiro e o principio da dignidade da pessoa humana. Edilson Pereira Nobre Junior
EMENTA: 1. A dignidade da pessoa e sua consagra��o constitucional. 2. O conte�do do princ�pio. 3. A igualdade entre os homens. 4. A impossibilidade de degrada��o do ser humano. 4.1. Dignidade da pessoa humana, direito e processo penal. 4.2. Dignidade da pessoa humana como limite � autonomia da vontade. 4.3. A tutela dos direitos da personalidade. 5. Direito a uma exist�ncia material m�nima. 6. Palavras finais.
1. A dignidade da pessoa e sua consagra��o constitucional.
Institui��o em torno da qual, desde os mais remotos tempos, sempre gravitou a experi�ncia jur�dica das comunidades foi a personalidade. Significa a possibilidade de conferir-se a um ente, humano ou moral, a aptid�o de adquirir direitos e contrair obriga��es.
Na atualidade, � pac�fica a sua titula��o por todos os homens. Observando-se a longa evolu��o por que passou a humanidade, v�-se que tal nem sempre aconteceu. A escravid�o, bastante arraigada nos h�bitos dos povos cl�ssicos da Gr�cia e de Roma, implicava na priva��o do estado de liberdade do indiv�duo, sendo reputada como a capitis deminutio m�xima.
Coube ao pensamento crist�o, fundado na fraternidade, provocar a mudan�a de mentalidade em dire��o � igualdade dos seres humanos. Essa luta, que teve seu lugar ainda no final do Imp�rio Romano, com a proibi��o de crueldades aos escravos, imposta pelo Imperador Constantino, continuara com o ressurgimento da escravid�o, provocado pelas navega��es, de modo a merecer censura do Papa Paulo III, atrav�s da bula Sublimis Deus, de 1537, somente cessando com o triunfar dos movimentos abolicionistas do S�culo XIX e do alvorecer da cent�ria que acaba de findar-se(1).
Na atualidade, pauta a tend�ncia dos ordenamentos o reconhecimento do ser humano como o centro e o fim do Direito. Essa inclina��o, refor�ada ao depois da traum�tica barb�rie nazi-fascista, encontra-se plasmada pela ado��o, � guisa de valor b�sico do Estado Democr�tico de Direito, da dignidade da pessoa humana.
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A Constitui��o da Rep�blica italiana, de 27 de dezembro de 1947, pareceu propender a esse respeito quando, no p�rtico do seu art. 3�, inserido no espa�o reservado aos Princ�pios Fundamentais, afirmou que "todos os cidad�os t�m a mesma dignidade social e s�o iguais perante a lei".
Por�m, a iniciativa pioneira nesse manifestar � admitida como pertencente � Lei Fundamental de Bonn, de 23 de maio de 1949, respons�vel por solenizar, no seu art. 1.1., incisiva declara��o: "A dignidade do homem � intang�vel. Os poderes p�blicos est�o obrigados a respeit�-la e proteg�-la". O preceito recolhe sua inspira��o na Declara��o Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembl�ia Geral das Na��es Unidas de 10 de dezembro de 1948, sem olvidar o respeito aos direitos naturais, inalien�veis e sagrados do homem, propugnados pelos revolucion�rios franceses atrav�s da Declara��o dos Direitos do Homem e do Cidad�o, de 26 de agosto de 1789(2).
Nessa linha, a Constitui��o da Rep�blica Portuguesa, promulgada em 1976, acentua, logo no seu art. 1�, inerente aos princ�pios fundamentais, que: "Portugal � uma Rep�blica soberana, baseada, entre outros valores na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na constru��o de uma sociedade livre, justa e solid�ria". Da mesma forma, a Constitui��o da Espanha, advinda ap�s a derrocada do franquismo, expressa : "A dignidade da pessoa, os direitos inviol�veis que lhe s�o inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito pela lei e pelos direitos dos outros s�o fundamentos da ordem pol�tica e da paz social". Na Fran�a, malgrado a sua tradi��o na prote��o dos direitos individuais, n�o se encontra o princ�pio explicitado no sucinto texto da Constitui��o de 1958, tendo sido, como nos informa FRANCK MODERNE(3), objeto de extra��o pelo labor hermen�utico do Conselho Constitucional, servindo de arr�t de principe a decis�o 94-343-344 DC, proferida em 27 de julho de 1994.
Com a derrocada do comunismo no leste europeu, as recentes constitui��es dos pa�ses que outrora se filiaram a essa forma de governo totalit�ria, passaram a cultuar, entre as suas diretrizes, a dignidade do ser humano. Assim se verificou nos textos seguintes: Constitui��o da Rep�blica da Cro�cia, de 22 de dezembro de 1990 (art. 25); Pre�mbulo da Constitui��o da Bulg�ria, de 12 de julho de 1991; Constitui��o da Rom�nia, de 08 de dezembro de 1991 (art. 1�); Lei Constitucional da Rep�blica da Let�nia, de 10 de dezembro de 1991 (art. 1�); Constitui��o da Rep�blica eslovena, de 23 de dezembro de 1991 (art. 21); Constitui��o da Rep�blica da Est�nia, de 28 de junho de 1992 (art. 10�); Constitui��o da Rep�blica da Litu�nia, de 25 de outubro de 1992 (art. 21); Constitui��o da Rep�blica eslovaca, de 1� de setembro de 1992 (art. 12); Pre�mbulo da Constitui��o da Rep�blica tcheca, de 16 de dezembro de 1992; Constitui��o da Federa��o da R�ssia, de 12 de dezembro de 1993 (art. 21).
O nosso constitucionalismo que, a partir de 1934, vem sofrendo forte influxo germ�nico, n�o ficou alheio ao tema(4). O Constituinte de 1988 deixou claro que o Estado Democr�tico de Direito que institu�a tem, como fundamento, a dignidade da pessoa humana (art. 1�, III).
Tra�ada essa exposi��o inicial, volveremos nossa abordagem em dire��o � identifica��o do �mbito de conforma��o material do princ�pio para, em seguida, apontar as conseq��ncias de maior relevo que resultam do seu reconhecimento em nossa Lei Maior.
2. O conte�do do princ�pio.
O postulado da dignidade humana, em virtude da forte carga de abstra��o que encerra, n�o tem alcan�ado, quanto ao campo de sua atua��o objetiva, unanimidade entre os autores, muito embora se deva, de logo, ressaltar que as m�ltiplas opini�es se apresentam harm�nicas e complementares.
KARL LARENZ(5), instado a pronunciar-se sobre o personalismo �tico da pessoa no Direito Privado, reconhece na dignidade pessoal a prerrogativa de todo ser humano em ser respeitado como pessoa, de n�o ser prejudicado em sua exist�ncia (a vida, o corpo e a sa�de) e de fruir de um �mbito existencial pr�prio.
Por sua vez, ERNESTO BENDA(6) aduz que a consagra��o, no art. 1.1. da Lei Fundamental tedesca, da dignidade humana como par�metro valorativo, evoca, inicialmente, o cond�o de impedir a degrada��o do homem, em decorr�ncia de sua convers�o em mero objeto de a��o estatal. Mas n�o � s�. Igualmente, esgrime a afirmativa, de aceita��o geral, de competir ao Estado a procura em propiciar ao indiv�duo a garantia de sua exist�ncia material m�nima.
Mais completo, JOAQU�N ARCE Y FL�REZ - VALD�S(7) vislumbra no respeito � dignidade da pessoa humana quatro importantes conseq��ncias: a) igualdade de direitos entre todos os homens, uma vez integrarem a sociedade como pessoas e n�o como cidad�os; b) garantia da independ�ncia e autonomia do ser humano, de forma a obstar toda coa��o externa ao desenvolvimento de sua personalidade, bem como toda atua��o que implique na sua degrada��o; c) observ�ncia e prote��o dos direitos inalien�veis do homem; d) n�o admissibilidade da negativa dos meios fundamentais para o desenvolvimento de algu�m como pessoa ou a imposi��o de condi��es subumanas de vida. Adverte, com carradas de acerto, que a tutela constitucional se volta em detrimento de viola��es n�o somente levadas a cabo pelo Estado, mas tamb�m pelos particulares.
Vistas essas posi��es, l�cito proceder �s suas concilia��es mediante a decomposi��o alvitrada pelo �ltimo dos autores. � que este, ao desmembrar os diversos pontos de reflexo do princ�pio analisado, demais de encampar a opini�o dos doutrinadores antes referidos, ampliou o raio de a��o demarcado � dignidade da pessoa humana.
Com base na sistematiza��o de JOAQU�N ARCE Y FL�REZ - VALD�S, podemos, mediante as adapta��es necess�rias, revelar o substrato material da dignidade da pessoa humana em nossa ordem jur�dica.
Disso resulta que a interfer�ncia do princ�pio se espraia, entre n�s, nos seguintes pontos: a) rever�ncia � igualdade entre os homens (art. 5�, I, CF); b) impedimento � considera��o do ser humano como objeto, degradando-se a sua condi��o de pessoa, a implicar na observ�ncia de prerrogativas de direito e processo penal, na limita��o da autonomia da vontade e no respeito aos direitos da personalidade, entre os quais est�o inseridas as restri��es � manipula��o gen�tica do homem; c) garantia de um patamar existencial m�nimo(8).
Prosseguindo, examinaremos, pormenorizadamente, cada um dos aspectos mencionados.
3. A igualdade entre os homens.
A consagra��o da dignidade da pessoa humana, como visto, implica em considerar-se o homem, com exclus�o dos demais seres, como o centro do universo jur�dico. Esse reconhecimento, que n�o se dirige a determinados indiv�duos, abrange todos os seres humanos e cada um destes individualmente considerados, de sorte que a proje��o dos efeitos irradiados pela ordem jur�dica n�o h� de se manifestar, a princ�pio, de modo diverso ante a duas pessoas.
Da� seguem-se duas importantes conseq��ncias. De logo, a de que a igualdade entre os homens representa obriga��o imposta aos poderes p�blicos, tanto no que concerne � elabora��o da regra de direito (igualdade na lei) quanto em rela��o � sua aplica��o (igualdade perante a lei). Necess�ria, por�m, a advert�ncia de que o reclamo de tratamento ison�mico n�o exclui a possibilidade de discrimina��o, mas sim a de que esta se processe de maneira injustificada e desarrazoada. Assim bem explanou CELSO ANT�NIO BANDEIRA DE MELLO, em excelente monografia, [9] corroborado pela ensinan�a de CARMEN L�CIA ANTUNES ROCHA(10).
Em segundo lugar, emerge a considera��o da pessoa humana como um conceito dotado de universalidade. Invi�vel, portanto, qualquer distin��o de direitos entre os nacionais e estrangeiros, salvo quanto �queles vinculados ao exerc�cio da cidadania.
Assim � que deve ser entendido o caput do art. 5� da Lei Maior, de maneira que a titularidade dos direitos que enuncia se volte a todos aqueles que se encontrem vinculados � ordem jur�dica brasileira, deles n�o se podendo privar o estrangeiro s� pelo fato de n�o residir em solo p�trio. Seria, verbi gratia, inadmiss�vel o n�o conhecimento pela jurisdi��o de habeas corpus, impetrado em favor de alien�gena que esteja de passagem pelo territ�rio nacional, em virtude de neste n�o manter resid�ncia.
Sem raz�o JOS� AFONSO DA SILVA(11) quando prop�e que a limita��o dos destinat�rios dos direitos individuais pelo Constituinte de 1988, a exemplo das cl�usulas constantes nas constitui��es pret�ritas, h� de acarretar conseq��ncias normativas. Melhor se nos afigura a postura assumida por PONTES DE MIRANDA, (12) ainda quando vigente o art. 153, caput, da Constitui��o de 1969, e, nos dias atuais, por CELSO RIBEIRO BASTOS(13) e NAGIB SLAIBI FILHO(14).
A esse respeito, importante salientar o relato de JOAQU�N ARCE Y FL�REZ - VALD�S(15), mencionando que o Tribunal Constitucional Espanhol, atrav�s de decis�o prolatada em 30 de setembro de 1995, entendeu que os direitos pertencentes � pessoa, enquanto tal, n�o abrangem somente os espanh�is, mas, igualmente, os estrangeiros e que tais direitos, como frisado na anterior delibera��o de 23 de novembro de 1984, s�o aqueles imprescind�veis � garantia da dignidade da pessoa humana.
4. A impossibilidade de degrada��o do ser humano.
Outra vertente de relevo pela qual se espraia a dignidade da pessoa humana est� na premissa de n�o ser poss�vel a redu��o do homem � condi��o de mero objeto do Estado e de terceiros. Veda-se a coisifica��o da pessoa. A abordagem do tema passa pela considera��o de tr�plice cen�rio, concernente �s prerrogativas de direito e processo penal, � limita��o da autonomia da vontade e � venera��o dos direitos da personalidade.
4.1. Dignidade da pessoa humana, direito e processo penal.
Aqui se est� a garantir que o Estado, ao manejar o jus puniendi em benef�cio da restaura��o da paz social, atue de modo a n�o se distanciar das balizas impostas pela condi��o humana do acusado da pr�tica de crime. Por mais abjeta e reproch�vel que tenha sido a a��o delituosa, n�o h� como se justificar seja o seu autor privado de tratamento digno.
Abordando o tema � luz do arts. 1.1 e 103.1, ambos da Constitui��o alem�, ERNESTO BENDA(16) afirma que a dignidade da pessoa humana, no campo penal, traduz ao acusado o direito de poder defender-se mediante ativa participa��o no processo, como tamb�m a n�o ser for�ado a falar contra a sua vontade, excluindo-se a utiliza��o de meios psicol�gicos ou t�cnicos (narcoan�lise ou detector de mentiras), a fim de se averiguar a veracidade das declara��es daquele.
Linhas adiante(17) aduz que o art. 1.1 da Lei Fundamental de 1949 pro�be penas desproporcionais e cru�is, tendo em vista a necessidade de se respeitar os pressupostos b�sicos de uma exist�ncia individual e social do condenado, estando a licitude da pris�o perp�tua a depender de se reservar �quele a possibilidade de liberdade, uma vez cumprida parte consider�vel da pena. Quanto � san��o capital, sustenta que a sua imposi��o, atrav�s da reforma do art. 102 da Constitui��o, enfrentaria os limites do poder constituinte derivado, impostos pelo art. 1.2, em virtude de pressupor que o Estado se subtrairia � miss�o de ressocializar o delinq�ente.
A esse respeito, n�o restou omisso o direito constitucional brasileiro. A Constitui��o de 1988, no rol de direitos individuais do seu art. 5�, trouxe a lume importantes exig�ncias que o Estado, no desenrolar de sua fun��o punitiva, h� de observar, sob pena de desrespeitar a dignidade da pessoa humana(18). Assim sendo, podemos descortinar, no referido dispositivo, garantias inerentes �: a) veda��o em submeter qualquer pessoa a tratamento desumano ou degradante (inciso III), assegurando-se ao preso o respeito � integridade f�sica e moral (inciso XLIX); b) observ�ncia do devido processo legal (inciso LIV) (19) com todos os seus consect�rios, entre os quais o contradit�rio e a ampla defesa (inciso LV), o julgamento por autoridade competente (inciso LIII), a n�o admissibilidade de provas obtidas por meio il�cito (inciso LVI), a proscri��o de ju�zos ou tribunais de exce��o (inciso XXXVII) e a considera��o de que ningu�m ser� reputado culpado sen�o antes do tr�nsito em julgado de senten�a condenat�ria (inciso LVII), importando esta �ltima em pressupor que a segrega��o do acusado, antes da senten�a irrecorr�vel, somente se legitima em situa��es proporcionais previstas em lei; c) legitimidade material do direito de punir, tais como a reserva legal da defini��o de crimes e comina��o de penas (inciso XXXIX), a individualiza��o destas na medida da culpabilidade do infrator (incisos XLV e XLVI), a interdi��o de determinadas san��es, tais como a pena capital, a pris�o perp�tua, os trabalhos for�ados, o banimento e as penas cru�is (inciso XLVII); d) movimenta��o da compet�ncia prisional (incisos LXI a LXVI e LXVIII); e) execu��o da pena (incisos XLVIII e L) (20).
Os preceptivos citados servem para ilustrar a grande preocupa��o dispensada ao princ�pio da dignidade da pessoa humana, a fim de impedir que a atividade punitiva do Estado, manifestada sob o interesse de velar pela seguran�a da coletividade, resulte como justificativa � deprecia��o do indiv�duo.
4.2. Dignidade da pessoa humana como limite � autonomia da vontade.
Valor que, amparado na igualdade formal das partes, granjeou enorme prest�gio com o Estado Liberal foi o da autonomia da vontade, de modo que o art. 1.134 do C�digo Civil de Napole�o, promulgado em 1804, solenizava o preponderante papel da for�a geratriz do consentimento, afirmando fazer o contrato lei entre as partes.
Essa concep��o sofrera forte mitiga��o com o triunfar do Estado prestacionista, calcado na constata��o de que substancialmente as pessoas apresentam desigualdades, e, por isso, a manifesta��o volitiva h� de encontrar pontos de conten��o.
Nesta abordagem, n�o nos deteremos na carga limitativa que os mandamentos legais, no intuito de compensar a qualidade de hipossuficiente de alguns contratantes, encetam para delimitar as faculdades jur�dicas decorrentes da vontade. A nossa aten��o ser� dispensada �quelas situa��es em que um dos contratantes � reduzido � condi��o de mero objeto da pretens�o contratual, com o desrespeito � sua condi��o de pessoa, tal como se verifica nas hip�teses de risco de vida, ou em que a execu��o da presta��o importe para o pactuante em sua exposi��o ao rid�culo.
Quest�o interessante � a das obriga��es cujo cumprimento envolve risco de vida. LUIS D�EZ - PICAZO e ANTONIO GULL�N(21), demais de afirmarem que a maioria das legisla��es que se t�m ocupado sobre o assunto consideram inexig�veis as presta��es capazes de implicar na realiza��o de atos excepcionalmente perigosos para a vida ou integridade f�sica do obrigado, sustentam que, em tais situa��es, cuja enumera��o exaustiva � imposs�vel proceder, h� a autoridade social de servir-se da consci�ncia social, com vistas a verificar com que intensidade se possa estimar o contrato como contr�rio � ordem p�blica e aos bons costumes.
Em nosso direito, n�o se pode perder de vista o art. 82 do C�digo Civil, ao inserir, como condi��o objetiva de validade do neg�cio jur�dico, a liceidade de seu objeto, o qual n�o poder� contrariar a ordem p�blica, a moral e os bons costumes.
Nessa linha, pode-se citar o art. 7�, XXXIII, da CF, que, no intuito de preservar a sa�de do laborista de tenra idade, pro�be o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos e de qualquer labor a menores de dezesseis anos, salvo na condi��o de aprendiz e, mesmo assim, a partir de quatorze anos.
Dessarte, vindo a lume um contrato, em que uma das partes se obrigara a cumprir presta��o consistente em ato suscet�vel de acarretar-lhe, em condi��es anormais, risco de vida, ou capaz de impor s�ria ofensa � sa�de, tem-se a ocorr�ncia de maltrato � ordem p�blica e, como conseq��ncia, a invalidade do neg�cio jur�dico (art. 145, II, CCB). Aqui a ordem p�blica � ferida independente da eventual desigualdade econ�mica das partes, mas em raz�o do objeto da rela��o jur�dica obrigacional traduzir menoscabo � �ndole humana do indiv�duo.
Outras hip�teses aptas a gerarem desrespeito � dignidade do ser humano se centram naquelas contrata��es em que o contratado, durante a execu��o do seu objeto, encontra-se ante situa��o capaz de submet�-lo ao rid�culo, ou melhor, a tratamento degradante.
Ilustra bem o assunto o coment�rio, levado a cabo por JOAQUIM B. BARBOSA GOMES(22), de decis�o do Conselho de Estado da Fran�a, de outubro de 1995, respons�vel por acarretar sens�vel reviravolta na no��o de ordem p�blica como retora do exerc�cio do poder de pol�cia.
O fato, largamente presente nos notici�rios, remontou ao final do ano de 1991, sendo patrocinado por empresa do ramo de entretenimento para jovens, ao lan�ar, em algumas discotecas da regi�o metropolitana de Paris e arrabaldes, uma n�o usual atra��o, conhecida como "arremesso de an�o" (lancer de nain), consistente no lan�amento pela plat�ia de um indiv�duo de pequena estatura (um an�o) de um ponto a outro do estabelecimento, tal como se fosse um proj�til.
Interditada a pr�tica por ordem do prefeito de Morsang-sur-Orge, sob a alegativa de viola��o ao art. 131 do C�digo dos Munic�pios, bem assim com fundamento no art. 3� da Conven��o Europ�ia de Direitos Humanos, tal decis�o foi anulada pelo Tribunal Administrativo de Versailles.
Levado o caso ao Conselho de Estado, este, decidindo recurso, reformou a decis�o de primeiro grau da jurisdi��o administrativa, com vistas a manter h�gido o ato administrativo impugnado, declarando que o respeito � dignidade da pessoa humana � um dos componentes da no��o de ordem p�blica, cabendo � autoridade administrativa, no uso do poder de pol�cia, interditar espet�culo atentat�rio a t�o importante valor. Da delibera��o, algumas constata��es ainda podem ser destacadas: a) a dignidade da pessoa humana, como lastro do poder de pol�cia, representa uma limita��o � liberdade individual, mais precisamente � liberdade de contratar, tutelando, assim, o indiv�duo contra si pr�prio; b) no escopo de definir o que se deve entender por tratamento degradante, o Conselho de Estado hauriu no��o da Corte Europ�ia dos Direitos Humanos (caso Tyer), ao apontar aquele na atitude "que humilha grosseiramente o indiv�duo diante de outrem ou o leva a agir contra a sua vontade ou sua consci�ncia".
Considerando-se que, na Fran�a, a dignidade da pessoa humana foi reverenciada pela jurisdi��o administrativa, a despeito de n�o constar expressa na Lei Fundamental, (23) com maior raz�o h� de se concluir pela necessidade de sua observ�ncia nestas plagas, onde inserida como fundamento da Rep�blica Federativa do Brasil (art. 1�, III), de modo que se h� de concluir pela ilegitimidade das disposi��es, constantes em neg�cios jur�dicos, que produzam situa��es de aviltamento do ser humano. A manifesta��o volitiva, nessas situa��es, expor-se-� a censuras do Judici�rio e da Administra��o, calcadas, quanto a esta, na compet�ncia de pol�cia.
4.3. A tutela dos direitos da personalidade.
Conatural ao reconhecimento jur�dico da dignidade da pessoa humana decorre a salvaguarda dos direitos da personalidade. Estes, consoante a precis�o conceitual de CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, (24) configuram "um conte�do m�nimo e imprescind�vel da esfera jur�dica de cada pessoa", incidentes sobre a sua vida, sa�de e integridade f�sica, honra, liberdades f�sica e psicol�gica, nome, imagem e reserva sobre a intimidade de sua vida privada. Dessa enumera��o, emanam quest�es relativas � vida em forma��o, aos novos m�todos de reprodu��o da pessoa humana, � manipula��o gen�tica da pessoa, (25) �s situa��es de risco de vida, ao transplante de �rg�os, tecidos e partes do corpo humano, entre outras de patente atualidade.
Notabilizam-se por serem: a) de natureza extrapatrimonial, embora o seu maltrato possa implicar em reflexos econ�micos; b) direitos absolutos, com efic�cia erga omnes, pois o seu respeito � imposto a todos (Estado e particulares); c) irrenunci�veis, n�o podendo o seu titular deles abdicar; d) intransmiss�veis, restando inv�lida a sua cess�o a outrem, mediante ato gratuito ou oneroso; e) imprescrit�veis, uma vez que o transcurso do tempo, sem o seu uso pelo titular, n�o lhe acarreta a extin��o.
Dentre essas caracter�sticas, duas delas guardam �ntima vincula��o ao tema sob enfoque, quais sejam a irrenunciabilidade e a intransmissibilidade. � que estas impedem que a vontade do titular possa legitimar o desrespeito � condi��o humana do indiv�duo. Isso n�o quer significar que tornem, de todo, irrelevante o consentimento nessa seara. Apenas limitam a liberdade de sua manifesta��o quando contr�ria � ordem p�blica. Exemplificando, de nenhuma valia se afigura o consenso capaz de importar na supress�o do bem da vida. Diferentemente, assoma admiss�vel, observados certos par�metros, uma limita��o volunt�ria do direito � integridade f�sica, como se v� no consentimento para interven��es m�dicas (dispens�vel em casos de estado de necessidade), submiss�o a opera��o pl�stica de cunho est�tico, participa��o em jogos esportivos violentos, etc.
Impondo balizas � express�o volitiva, o art. 81 do C�digo Civil portugu�s de 1966 assevera que o consentimento do titular n�o poder� contrariar a ordem p�blica, ficando-lhe assegurado o direito de revog�-lo a qualquer tempo. Por seu turno, a hisp�nica Lei 25, de 20 de dezembro de 1990, denominada Lei do Medicamento, disciplina, nos seus arts. 59 e seguintes, que o assentimento para a realiza��o de experi�ncias cl�nicas h� de ser prestado de modo expresso, mediante escrito, ap�s o interessado haver recebido informa��o precisa sobre a natureza da interven��o, seu alcance e risco, podendo, a qualquer tempo, ser revogado sem invoca��o de causa.
No nosso direito positivo, o art. 82 do C�digo Civil, ao mencionar os requisitos indispens�veis � validade dos atos jur�dicos, � incisivo em dizer que esta requer objeto l�cito, de modo a afastar as disposi��es ofensivas � ordem p�blica. No que concerne � revogabilidade do consentimento, tem-se, na recente Lei 9.434/97, a disciplinar a remo��o de �rg�os, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, que o doador, estando vivo, poder�, a qualquer instante revogar a doa��o, desde que o fa�a antes desta (art. 9�, �5�). Quanto � doa��o post mortem, a MP 1.718 � 3, de 30-12-98, inseriu �4� ao art. 4�, dispondo que o pai, a m�e, o filho ou o c�njuge, poder� manifestar-se contrariamente � doa��o, o que ser� prontamente acatado pelas equipes de transplante e remo��o.
Necess�rio, assim, ter em conta que a observ�ncia das conseq��ncias jur�dicas decorrentes dos direitos de personalidade � imprescind�vel ao respeito da dignidade do ser humano, porquanto a sua idealiza��o, com �nfase para a jurisprud�ncia alem�, formada ao depois da segunda conflagra��o mundial, teve em mira evitar que o indiv�duo fosse submetido a qualquer sorte de menosprezo, quer pelo Estado, ou pelos demais indiv�duos.
5. Direito a uma exist�ncia material m�nima.
Al�m das facetas apontadas, a consagra��o constitucional da dignidade da pessoa humana resulta na obriga��o do Estado em garantir � pessoa humana um patamar m�nimo de recursos, capaz de prover-lhe a subsist�ncia.
Na Alemanha, informa-nos ERNESTO BENDA(26), passou-se a entender, ap�s a supera��o da anterior orienta��o do Tribunal Constitucional (BverfGE 1,97 (104), que o art. 1.1 da Lei Fundamental de 1949 impunha, al�m da perspectiva do indiv�duo n�o ser arbitrariamente tratado, um respeito cada vez maior pela sua sobreviv�ncia. Assim, de acordo com tal preceito, afigura-se inadmiss�vel que o administrado seja despojado de seus recursos indispens�veis � sua exist�ncia digna, de sorte que a interven��o estatal na propriedade, pela via fiscal ou n�o, n�o dever� alcan�ar patamares capazes de priv�-lo dos meios mais elementares de subsist�ncia. De modo igual, o citado art. 1.1 traduz, em detrimento dos poderes p�blicos, a obriga��o adicional de prover ao cidad�o um m�nimo existencial.
Entre n�s, o cen�rio descortinado pelo art. 1�, III, da CF, n�o � diverso. A priva��o da propriedade, por ato emanado do Estado, subordina-se � observ�ncia de interesse p�blico, previsto no ordenamento jur�dico, com a garantia ao particular de indeniza��o pr�via (art. 5�, XXIV). A obriga��o do administrado de contribuir para os encargos coletivos guarda vincula��o ao par�metro da n�o imposi��o de tributo com efeito de confisco (art. 150, IV).
Doutro lado, o direito � exist�ncia digna n�o � assegurado apenas pela n�o absten��o do Estado em afetar a esfera patrimonial das pessoas sob a sua autoridade. Passa tamb�m pelo cumprimento de presta��es positivas. N�o foi � toa que a nossa Lei Fundamental imp�s, ao Estado e � sociedade, a realiza��o de a��es integradas para a implementa��o da seguridade social (art. 194), destinada a assegurar a presta��o dos direitos inerentes � sa�de, � previd�ncia e � assist�ncia social.
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* Necessidade de um enfoque estritamente jur�dico sobre a modula��o dos efeitos temporais nas decis�es proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em controle de constitucionalidade de norma tribut�ria
* Declara��o de inconstitucionalidade por tribunais administrativos fiscais
Disso decorre que ao Estado cabe organizar e manter sistema previdenci�rio, com vistas a suprir os rendimentos do trabalhador por ocasi�o das conting�ncias da vida greg�ria (art. 201), englobando: a) cobertura dos eventos de doen�a, invalidez, morte e idade avan�ada; b) prote��o � maternidade, especialmente � gestante; c) prote��o ao trabalhador em situa��o de desemprego involunt�rio; sal�rio-fam�lia e aux�lio-reclus�o para os dependentes do trabalhador de baixa renda; e) pens�o por morte.
Da mesma forma, �queles n�o filiados � previd�ncia social, incumbe-se ao aparato estatal a presta��o de assist�ncia social quando necessitarem (art. 203), consistindo nas seguintes presta��es: a) prote��o � fam�lia, � maternidade, � inf�ncia, � adolesc�ncia e � velhice; b) amparo �s crian�as e adolescentes carentes; c) promo��o da integra��o ao mercado de trabalho; d) habilita��o e reabilita��o das pessoas portadoras de defici�ncias, com a sua integra��o � vida em comunidade; e) garantia de um sal�rio m�nimo de benef�cio mensal � pessoa portadora de defici�ncia e ao idoso que comprovem n�o possuir meios de prover � pr�pria manuten��o ou de t�-la provida por sua fam�lia, tendo sua regulamenta��o advindo com a Lei 8.742/93.
N�o esquecer, ainda, as a��es no campo da sa�de, realizadas mediante pol�ticas sociais e econ�micas que colimem a redu��o dos riscos de doen�a e de outros agravos, garantindo-se o acesso universal igualit�rio �s a��es e servi�os para sua promo��o, prote��o e recupera��o (art. 196).
Esses par�metros protetivos n�o se exaurem na prov�ncia das rela��es Estado � indiv�duo. Absolutamente. Avan�am suas fronteiras, de sorte a evitar o empobrecimento sem causa por ato atribu�vel ao particular. Dois exemplos constitucionais centram-se no: a) rol do art. 7�, I a XXXIV, da Lei Maior, estabelecendo a por��o m�nima de direitos assegurados ao empregado, urbano ou rural; b) respeito � defesa do consumidor nos v�nculos contratuais de massa (arts. 5�, XXXII, e 170, V). E n�o � s�. O art. 170, caput, da Lei M�xima, ao fincar as pilastras em que se ancora a ordem econ�mica, consistentes no concerto entre a valoriza��o do trabalho humano e a livre iniciativa, assinala como finalidade daquela garantir a todos exist�ncia digna, em compasso com os ditames da justi�a social.
Feitas essas considera��es, real�ando o car�ter de princ�pio fundamental fru�do pela dignidade da pessoa humana, de notar-se que o mais importante, aqui como nos demais t�picos analisados, � a sua atua��o como diretriz hermen�utica. Nesse sentido, s�o dignas de destaque algumas manifesta��es de nossa jurisprud�ncia.
Inicialmente, n�o se pode deixar de mencionar o brilhante aresto do STF no HC 45.232 � GB(27). Nesse se questionava a constitucionalidade do art. 48 do Decreto-lei 314/67, ent�o Lei de Seguran�a Nacional, que, em havendo flagrante delito, ou o recebimento da den�ncia, encontrava-se prevista, em detrimento do preso provis�rio ou denunciado, a suspens�o do exerc�cio de profiss�o, de emprego em entidade privada, ou de cargo ou fun��o na administra��o p�blica, direta e indireta.
Concedendo a ordem, a Excelsa Corte ressaltou a posi��o de antagonismo constitucional que se encontrava no dispositivo legal, cuja execu��o o rem�dio her�ico buscava evitar, contrariando o direito � vida, enunciado no art. 150, caput, da Constitui��o de 1967. O voto do eminente relator, Min. THEM�STOCLES BRAND�O CAVALCANTI(28), no que foi acompanhado pelos seus pares, forte salientou que o ato de tornar-se imposs�vel o desempenho de uma atividade profissional, que permita ao indiv�duo obter os meios de subsist�ncia, � o mesmo que lhe tirar um pouco de sua vida, porque esta n�o prescinde dos meios materiais para a sua prote��o. Embora n�o concluindo pelo dever do Estado em proporcionar recursos ao indiv�duo, sustentou que aquele n�o pode, sem que haja uma decis�o judicial leg�tima, privar algu�m do exerc�cio de atividade l�cita, com a qual garanta a sua manten�a, partindo da premissa de que a vida n�o constitui apenas um conjunto de fun��es resistentes � morte, mas, numa perspectiva mais ampla, a afirma��o positiva das condi��es voltadas a assegurar ao ser humano, bem como � sua fam�lia, os recursos indispens�veis � sua subsist�ncia.
Somente ficou inc�lume � eiva de incompatibilidade vertical a previs�o de suspens�o do exerc�cio de cargo ou fun��o p�blica, tendo em vista que a legisla��o de reg�ncia assegurava, em casos que tais, a percep��o pelo servidor de uma parte de seus vencimentos.
� certo que, no voto-condutor do julgado, n�o fora mencionada a express�o dignidade da pessoa humana, at� porque ainda n�o incorporada ao nosso constitucionalismo. No entanto, pode-se, com certeza, frisar que a venera��o ao princ�pio n�o passou despercebida. A garantia � vida, erigida como fundamento basilar da concess�o do writ, teve como raz�o de ser a enorme estima que, �quela �poca, o nosso ordenamento tributava � pessoa humana como tal.
Outras remiss�es pretorianas podem ser invocadas. Ei-las nas hip�teses abaixo: a) na concess�o de mandado de seguran�a para liberar cruzados novos retidos, permitindo que o impetrante pudesse utilizar os ativos financeiros de sua propriedade, a fim de conjurar grave enfermidade que se abatera em detrimento de sua genitora; (29) b) desconsidera��o, para fins de renda mensal vital�cia � mulher casada, da percep��o de aposentadoria por seu marido, em valor um pouco superior ao m�nimo legal; (30) c) deferimento de aposentadoria por invalidez, denegada pela n�o comprova��o de car�ncia, em favor de segurado que deixara de continuar a sua atividade laborativa em virtude de enfermidade de que fora acometido; (31) d) manten�a de liminar que determinara o restabelecimento de benef�cio, suprimido na via administrativa, a partir da mera suspeita de fraude; (32) e) confirma��o de decis�o interlocut�ria que determinara o pagamento parcelado de d�vida previdenci�ria, em benef�cio de segurado em estado de sa�de grave, sem a necessidade de expedi��o de precat�rio. (33)
Apesar de nossa ainda escassa experi�ncia na judicatura, tivemos, por duas vezes, que nos defrontar com o postulado da dignidade da pessoa humana, utilizando-o como b�ssola interpretativa, com vistas a ajustar a fria invoca��o da legalidade, erigida como fator determinante da interven��o administrativa na esfera patrimonial do cidad�o.
A primeira das situa��es esteve materializada no Mandado de Seguran�a 98.5591-6/RN, (34) impetrado por aposentada da previd�ncia social, no intuito de que os descontos de valores recebidos indevidamente, em face de benef�cio anterior anulado, fossem efetuados em parcelas n�o superiores a 30% do montante mensal da nova aposentadoria, ao inv�s de uma s� vez, como dispunha o art. 227, �2�, do Decreto 2.172/97, para os casos de comprovado dolo, fraude ou m�-f�. Restou considerado que, tratando-se a impetrante de benefici�ria rural de avan�ada idade, sem outros meios de subsist�ncia, o desconto integral das import�ncias outrora percebidas fraudulentamente implicaria em privar aquele, por v�rios meses (aproximadamente nove), dos recursos indispens�veis � sua manten�a. Desse modo, foi deliberado que a reposi��o fosse efetuada em parcelas, como requerido na inicial.
Noutra ocasi�o, retratada pelo Mandado de Seguran�a 98.5266-6/RN, (35) impetrado por propriet�rio de im�vel rural declarado de interesse social, para fins de desapropria��o para reforma agr�ria, com imiss�o de posse efetuada por decis�o na a��o expropriat�ria, no af� de combater decis�o do Superintendente Regional do INCRA, que indeferira seu pleito de assentamento em um dos lotes, a recair preferencialmente sobre a sede do im�vel, conforme disp�e o art. 19 da Lei 8.629/93. Examinando-se que, de h� muito, o impetrante tinha como �nico meio de vida a explora��o do referido im�vel, o desrespeito ao preceito contido no citado diploma legal, que secunda comando do Estatuto da Terra (Lei 4.504/64, art. 25, I), entra em conflito com a imposi��o constitucional de dignidade da pessoa humana.
6. Palavras finais.
Ao cabo das breves considera��es expendidas, percebe-se que o Constituinte de 1988 plasmou, � guisa de fundamento da Rep�blica Federativa do Brasil como Estado Democr�tico de Direito, a dignidade da pessoa humana, retratando o reconhecimento de que o indiv�duo h� de constituir o objetivo primacial da ordem jur�dica. Dito fundamental(36), o princ�pio � cuja fun��o de diretriz hermen�utica lhe � irrecus�vel � traduz a repulsa constitucional �s pr�ticas, imput�veis aos poderes p�blicos ou aos particulares, que visem a expor o ser humano, enquanto tal, em posi��o de desigualdade perante os demais, a desconsider�-lo como pessoa, reduzindo-o � condi��o de coisa, ou ainda a priv�-lo dos meios necess�rios � sua manuten��o.
NOTAS
1. Relato minucioso acerca da escravid�o se colhe de AM�RICO JACOBINA LACOMBE (Escravid�o. Arquivos do Minist�rio da Justi�a, Bras�lia, ano 41, n. 171, p. 17-32, jan./mar. 1988).
2. � preciso deixar claro que o liberalismo n�o plasmara a concep��o de que a dignidade da pessoa humana constitu�sse incumb�ncia do Estado, at� porque a felicidade do indiv�duo estaria mais garantida quanto mais este estivesse imune � a��o estatal. Isso explica o motivo pelo qual a id�ia em foco ganhou maior relev�ncia com o Estado Social, porque na sociedade moderna a pessoa depende, de maneira mais intensa, das presta��es a cargo do Poder P�blico.
3. La dignit� de la personne comme principe constitutionnel dans le Constitutions Portugaise et Fran�aise. Organiza��o de Jorge Miranda. Perspectivas constitucionais nos vinte anos da Constitui��o de 1976. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. v. I., p. 226.
4. PAULO BONAVIDES (Curso de direito constitucional. 4. ed. S�o Paulo: Malheiros, 1993. p. 288, et seq) distingue, com clareza, tr�s fases de nossa hist�ria constitucional: a) a primeira, influenciada nos modelos franc�s e ingl�s do S�culo XIX, teve sua realiza��o com a Constitui��o de 1824; a segunda, inaugurada pela Constitui��o de 1891, representa uma aproxima��o com o exemplo norte-americano; a terceira, ainda em curso, baseia-se na presen�a dos tra�os inerentes ao perfil alem�o do S�culo XX, cujo in�cio fora marcado pela Constitui��o de 1934.
5. Derecho civil: parte general. Madri: Editoriales de Derecho Reunidas, 1978. p. 46.
6. Dignidad humana y derechos de la personalidad. In: BENDA, Ernesto et alii. Manual de derecho constitucional, Madri: Marcial Pons, 1996. p. 124-127.
7. Los principios generales del Derecho y su formulaci�n constitucional. Madri: Editorial Civitas, 1990. p. 149.
8. Louvado na tradi��o doutrin�ria e jurisprudencial alem�, MANOEL AFONSO VAZ (Lei e reserva da lei; a causa da lei na constitui��o portuguesa de 1976. Porto: Faculdade de Direito da Universidade Cat�lica Portuguesa, 1992. 515p. Tese de Doutorado. p. 190) vislumbra na dignidade da pessoa humana a qualidade de princ�pio �tico, de car�ter hierarquicamente superior �s normas constitucionais e, portanto, vinculativo do poder constituinte, de modo que qualquer regra positiva, ordin�ria ou constitucional, que lhe contrarie padece de ilegitimidade. Esse �, entre n�s, o pensamento de EDUARDO TALAMINI (Dignidade humana, soberania popular e pena de morte. Revista Trimestral de Direito P�blico, S�o Paulo, n. 11, p. 178-195. 1995), ao defender a impossibilidade, em face da considera��o da dignidade da pessoa humana como valor suprapositivo, da institui��o da pena de morte.
9. O Conte�do Jur�dico do Princ�pio da Igualdade. Revista dos Tribunais, 2. ed., S�o Paulo, p. 49, 1984.
10. O princ�pio constitucional da igualdade. Belo Horizonte: Editora L�r S/A, 1990. p. 39-40.
11. Curso de direito constitucional positivo. 8. ed. S�o Paulo: Malheiros, 1992. p. 177.
12. Coment�rios � Constitui��o de 1967, com a Emenda n� 1, de 1969. Revista dos Tribunais, 2. ed., S�o Paulo, Tomo IV, p. 696. 1974.
13. Coment�rios � Constitui��o do Brasil. S�o Paulo: Saraiva, 1989. v. 2, p. 4.
14. Anota��es � constitui��o de 1988; aspectos fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 198.
15. Los principios generales del derecho y su formulaci�n constitucional. Madri: Editorial Civitas, 1990. p. 148-149.
16. Dignidad humana y derechos de la personalidad. In: BENDA, Ernesto et alii. Manual de derecho constitucional, Madri: Marcial Pons, 1996. p. 127.
17. ibid. p. 127-128.
18. No particular, merece ser lido PEDRO ARMANDO EGYDIO DE CARVALHO (O sistema penal e a dignidade humana. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. Colet�nia doutrin�ria. Coordena��o Cl�udio Gilberto Aguiar H�er e Heleno Tregnago Saraiva. Editora Plenum. Formato em CD-ROM).
19. O STF (1� T., ac. un., rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU de 28-08-92, p. 13.453) extraiu da cl�usula do dwe processe of law o direito do acusado permanecer em sil�ncio, representativo de tutela contra a auto-incrimina��o.
20. O TRF - 3� Reg. ( 5� T., ac. un., rel. Ju�za SUZANA CAMARGO, DJU - II de 15-08-98, p. 467) vislumbrou na dignidade da pessoa humana fundamento para reputar inv�lida, na condena��o por tr�fico de entorpecentes, delito tido como hediondo, a proibi��o de progress�o prisional, imposta pelo art. 2�, �1�, da Lei 8.072/90. Esse entendimento, contudo, n�o fora partilhado pelo STF, conforme se infere de precedente l�der (Pleno, HC 69.657 - SP, mv, rel. Min. FRANCISCO REZEK, DJU de 18-06-93, p. 12.111) e decis�es posteriores (Pleno, HC 76.371 - SP, mv, rel. desig. SYDNEY SANCHES, DJU de 19-03-99, p. 10; 1� T., RE 246.693 - SP, ac. un., rel. Min. MOREIRA ALVES, DJU de 01-10-99, p. 54).
21. Instituciones de derecho civil. 2. ed. Madri: Editorial Tecnos, 1998. v. I , p. 217.
22. O poder de pol�cia e o princ�pio da dignidade da pessoa humana na jurisprud�ncia francesa. Revista Jur�dica TravelNet, p�gina principal, 20 jul. 1996.
23. Anote-se que o Conselho Constitucional, quando do citado precedente na DC 94 - 343 � 344, de 27 de julho de 1994, louvou-se, para descortinar a juridicidade da imposi��o de tratamento digno � pessoa, no Pre�mbulo da Constitui��o de 1946, primeira depois do segundo p�s-guerra, ao proclamar a prote��o contra toda forma de escraviza��o e degrada��o do ser humano.
24. Teoria geral do direito civil. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. p. 207.
25. Chamou-nos a aten��o impressionante relato de VOLNEI GARRAFA (Quest�es sobre bio�tica. Revista CEJ, Bras�lia, n. 8, p. 104-108, mai./ago. 1999) acerca da publica��o de den�ncia de que empresas norte-americanas expuseram � venda DNA de �ndios suru�s e caritianas, o qual possui, no mercado internacional, elevada cota��o, tendo em vista se cuidar de mat�ria-prima da maior import�ncia para a fabrica��o de novos imuno-derivados e vacinas.
26. Dignidad humana y derechos de la personalidad. In: BENDA, Ernesto et alii. Manual de derecho constitucional, Madri: Marcial Pons, 1996, p. 126.
27. Pleno, mv, rel. Min. THEM�STOCLES CAVALCANTI, DJU de 17-06-68, p. 02228
28. Conferir a �ntegra do voto na RTJ, v. 44, p. 322, et seq. jun. 1968.
29. TRF � 4� Reg., 2� T., ac. un., MS 24.633 � 9 � RS, rel. Juiz OSWALDO ALVAREZ, DJU de 23-09-92, p. 29.643.
30. TRF � 3� Reg., 1� T., ac. un., AC 53..325 � 7 � SP, rel. Ju�za RAMZA TARTUCE, DOE de 18-10-93, p. 119.
31. TRF � 3� Reg., 1� T., ac. un., AC 37..590 � 8 � SP, rel. Juiz OLIVEIRA LIMA, DJU � II de 02-12-97, p. 104.300.
32. TRF � 3� Reg., 2� T., ac. un., AI 42.695 � 2 � SP, rel. Juiz ARIC� AMARAL, DJU � II de 20-05-98, p. 266.
33. TRF � 4� Reg., 6� T., ac. un., AG no AI 1.08.0073 � 4 � RS, Juiz CARLOS SOBRINHO, DJU � II de 14-04-99, p. 979.
34. Cf. inteiro teor de senten�a publicada no Di�rio Oficial do Estado, edi��o de 18/11/98, p. 24.
35. Cf. inteiro teor de senten�a publicada no Di�rio Oficial do Estado, edi��o de 26/06/99, p. 18.
36. Interessante a leitura de IVO DANTAS (Princ�pios constitucionais e de interpreta��o constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995. p. 86-90) quando afirma que os princ�pios fundamentais formam o n�cleo central da Constitui��o, a irradiar o seu conte�do sobre esta como um todo, ostentando hierarquia ante os princ�pios gerais, que dirigem a sua carga eficacial para subsistema determinado.
17-02-2011 00:00
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